Cada vez que o Benfica perde um jogo
relativamente importante, especialmente depois de uma época melhor
(sim, porque também as tem, não são só os outros), o chorrilho de
comentários contra o clube encarnado desenrola-se nas redes sociais,
num rol de asco e jocosidade, de troca de galhardetes e apupos, de
gente que de correcto tem muito pouco. Ontem não foi excepção.
Isso faz-me, sempre, querer afastar do futebol, da minha clubice
interior (que sou benfiquista há demasiados anos para não vibrar
com as vitórias, nem ser indiferente aos jogos), e esquecer que
gosto de ir aos estádios, gosto da adrenalina que me deixa o
constante tremor de incredulidade e esperança, que o Benfas me
proporciona, normalmente, até ao último minuto (haja coração!).
Mas ontem, no meio da euforia pela
vitória alheia (de gente que é do Sevilha desde que nasceu, com
certeza), um comentário de um amigo (ou vários, em cascata, para
ser sincera) fez-me pensar mais além, para lá do futebol, para lá
de equipas e adorações, para lá de cores e emblemas. Na nossa
postura e atitude com a vida, com a sociedade, com o mundo. Não me
incomoda, nem um pouco, os laços que as pessoas criam com
determinados grupos, sejam eles desportivos, políticos, sociais, e
por aí adiante. Reconheço, e entendo perfeitamente, que a
identificação do indivíduo se faz (também), pela semelhança, a
aproximação, a integração, em colectividades que sinta como suas,
cujos valores abraça e cujos ritos segue. Não, não me incomoda nem
um pouco que haja a tendência para o agrupamento, para a comunidade,
em volta de um clube, um partido, uma religião, uma língua, per
se. Compreendo, da mesma forma, que a oposição é, em si mesma,
variável presente e constante na adopção de um grupo, tal como um
jogo tem duas equipas (ou mais) distintas, com cores diferentes,
bandeiras e slogans distintos, seguidos por adeptos também eles
identificados, se não na roupa, activamente, pelo menos na
respiração ofegante num lance perigoso, no olho que fecha de
desgosto quando o “seu” guarda-redes deixa entrar a bola. Sim,
compreendo a oposição na sua forma simples, que distingue, que nos
torna diferentes. Afinal, não temos de ser todos iguais, onde quer
que seja.
Agora, o que eu não entendo, confesso,
é a paixão pela derrota, pelo sofrimento, pelo azar do outro, mesmo
quando o “nós” pouco ou nada tem a ganhar com o assunto, quando
a oposição não lhe bate à porta, quando a afronta directa não
traz nada de bom, nem de novo, nem para um, nem para o outro. Porque
se é para confrontar algo ou alguém, ao menos que seja para que daí
advenha algo de positivo. Quando, ao ler as redes sociais depois de
qualquer momento importante, o que observo é um prazer sádico,
cruel, feroz, de ver o outro no chão, o outro sem luz, o outro a
perder, desacredito no ser humano, racional. Perde-se a razão,
perde-se a humanidade, perde-se a dignidade, e eis que o conflito
passa a ser uma série de ataques, violentos, verbais, físicos, dos
quais a determinada altura ninguém sabe o sentido, ninguém sabe
como começaram, para que servem, a não ser pela vontade de
infligir, no outro, a maior humilhação, irritação e desprezo.
Resultados construtivos? Nenhuns.
Somos assim no futebol, onde
frequentemente vejo portugueses, de outros clubes, a torcerem
ardentemente pela equipa menos falada dos confins da Rússia, se tal
significar ver o Benfica a perder e poderem desencadear o leque de
humilhações, a apresentação de feitos passados da sua equipa
(mesmo que, nesse ano, não tenham feito nada; mesmo que já tenham
sido eliminados dessa competição e quem ganhe ou perca não afecte
em nada), comparações sem fundo de sentido. Porque, se, antes do
jogo, a estratégia começa por tentar baixar o espírito do
adversário medindo forças, até consigo entender. Os maiores
estrategas militares já assim o previam e aconselhavam. Mas quando a
competição não nos afecta em nada, quando é só pelo tal (repito)
prazer sádico, então há algo de mal com a humanidade. A que vê
futebol e a que não vê, porque, se observarmos bem, este
comportamento estende-se para lá do desporto, e em esferas da vida,
pessoal e social, que deveriam ser um bocadinho mais compreensíveis, solidárias e abertas ao diálogo com o outro. E aí temos
partidos que só sabem trocar responsabilidades passadas, presos a
culpas que não resolverão nada, prontos a ferir o outro, em vez de
trabalhar em conjunto. E a vida vai, e a crise aumenta, e a sociedade empobrece, e quem lá está aquece o lugar e sai incólume. Vemos grupos sociais que canalizam nas
outras, ferozmente, a razão da sua desdita, rompendo laços,
desprezando uns e outros, fechando a possibilidade de crescimento
mútuo. Vemos adeptos cegos, que há muito esqueceram o que é
fair-play, especialmente fora do campo, onde não há leis para
palavras que ofendem, nem cartões para faltas graves.
Depois admiram-se, como aconteceu há
bem pouco, que a rivalidade que os consome não se sinta nos seus
ídolos ou líderes carismáticos. Não conseguem ver, são cegos. A
fotografia de dois líderes de bancadas opostas, a confraternizar
alegremente num almoço, incomoda. Aqui há umas semanas um vídeo
de um abraço entre o Cristiano Ronaldo e o Messi surpreendeu; o
mundo levantou a sobrancelha, e os dois devem ter bebido uma cerveja
num churrasco, a rir da celeuma alheia. Eu fá-lo-ia, no lugar deles.
Que rivalidade entre titãs, tal qual Leonidas e Xerxes, não faz
muito o meu género. E palpita-me que nem a eles.
Como diz uma amiga minha “menos,
gente, muito menos”. Não há qualquer necessidade, parece-me, de
querer ferir o outro. O mundo gira com menos ódio, acreditem. A
oposição existe, reconheço, e o confronto é, muitas vezes, força motriz do avanço, mas há vários patamares de acção e
a linha entre o que está correcto e o que não está é ténue. Mas
está lá. E serve para alguma coisa. Quanto mais não seja, para me
fazer desacreditar na capacidade do ser humano para a ver.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarDe vez em quando comento no teu blog e os textos desaparecem XD
ResponderEliminarAndo a aprender alemão e é uma língua que fascina pela capacidade de sintetizar numa só palavra conceitos complexos. Um desses casos é a palavra "schadenfreude" que define a alegria derivada da infelicidade de outra pessoa.
É uma palavra estrangeira, mas conheço muito bom português a quem assenta como uma luva (quer em assuntos desportivos, quer em muitos outros...)
(acontece-me imensas vezes isso, especialmente no C&C, não sei porque.)
EliminarNão é caso de estudo psicológico ou psiquiátrico? Olha que há aí qualquer coisa de muito estranho nessa alegria pela infelicidada alheia...
*infelicidade, pois claro. :D
EliminarSem dúvida que é caso psicológico. E pior ainda são aqueles casos em que num dia se dá graxa à pessoa ou instituição, e no dia seguinte acontece qualquer coisa que os faz "cair em desgraça" e os que mais os elogiavam são os primeiros a dar-lhes pontapés.
EliminarE, 5 de Março de 2012, escreveu-se uma coisa chamada "Do mau ganhar":
ResponderEliminarGosto, sobretudo, de jogos de mesa.
Dados, alguma coisa; cartas, bastante; jogos de tabuleiro, mais.
Mas raramente jogo.
Em primeiro lugar, porque nunca gostei de perder, sobretudo se à mercê da sorte, boa ou má.
Depois porque abomino quem não sabe ganhar.
Entendo que se resmungue, que se blasfeme, quando a coisa corre mal; percebo que se salte da cadeira, que se festeje, quando tudo corre de feição - até aqui ainda vou.
Mas não entendo o achincalhamento de quem perdeu, seja pelo próprio, seja (maxime) pelo vitorioso adversário. Se este atingiu o objectivo de quem joga (ganhar), de que lhe serve acicatar o perdedor?
Foi por isto que deixei de gostar de futebol (o expoente máximo ou, pelo menos, o mais divulgado, deste fenómeno), que me encafuo num cinema sempre que há um "clássico" ou um "derby" e que mudo de canal sempre que se fala no assunto sem carácter meramente informativo.
Também gostava de bloquear, no Facebook, qualquer post vindo de um movimento anti-um-clube-qualquer (o conceito de adepto eu ainda conheço, o de anti-adepto ultrapassa as minhas ínfimas capacidades) ou de uma mente que goza mais com a derrota alheia do que com a própria vitória.
E não, não me estou a referir ao SLB-FCP da última sexta-feira, porque nisto dos clubes de futebol sou assumidamente isenta e digo mal de todos com o mesmo amor e carinho.
(No caso concreto, é pior ainda, mas este fenómeno, que não acontece só contra o Benfica mas também dos seus adeptos para com os outros, ofende-me há muitos anos. Por isso detesto clubes, partidos e cegueiras, embora reconheça os primeiros dois como parte integrante de uma sociedade em que sou uma minoria)
Concordo plenamente. Eu parti do que aconteceu ontem, porque me toca enquanto Benfiquista que tem, mesmo que não queira e não o faça, que levar com o achincalhamento dos outros (um amigo meu uma vez esteve sem falar comigo três dias porque o Benfica ganhou ao Sporting, e tudo o que eu tinha dito antes do jogo foi um honesto "que ganhe o melhor"... haja paciência!), mas pensei-o para tudo o resto. É muita mesquinhez, é o que é.
EliminarSer-se adepto saudável de um clube, tudo bem, agora ser anti-o-que-quer-que-seja só porque sim, aí já me irrita profundamente.
E, já agora, em 21 de Março do mesmo ano, uma coisa chamada "Ódio aos Mouros":
ResponderEliminarPraticamente toda a vida me chamaram "moura", enquanto morei a Norte - tem lógica, não tenho sotaque de cá, cometi o crime de ter nascido na Maternidade Alfredo da Costa, passo as festas a Sul e a minha família é toda lá de baixo.
No resto da vida, enquanto morei a Sul, apelidaram-me de "tripeira", porque era a morada que constava do meu bilhete de identidade e o sítio onde me considerava em casa.
As pessoas têm necessidade disto, de chamar coisas às outras, de as rotular.
E até aqui ainda vou.
Chego a fazer de conta que não reparo quando se diz mal dos "mouros", abrindo uma excepção condescendente para mim, que não tenho vergonha das minhas origens (e não as escondo, como não o faria se tivesse nascido a Este ou a Oeste - no meio do Atlântico, sei lá). Como que me suportam, apesar delas (será suposto agradecer?). Yeyy, sou uma sortuda.
Atinjo o ponto de esboçar um sorriso quando, entre amigos, se fala de "Lisboa a arder" - estão a brincar, só podem, não seria possível que se falasse a sério, pois não?
Mas depois leio coisas.
Oiço coisas.
Vejo coisas.
E sou remetida para situações em que alguém clarividente se considerava superior em nome da cor de pele, de uma raça, do sítio onde se nasceu, de uma ideologia, uma religião ou do género a que pertence.
E não encontro diferença alguma entre o ódio que se tem aos outros por qualquer desses motivos e as palavras cuspidas (mesmo escritas, são violentamente cuspidas) porque um clube que não é o nosso ganhou um jogo ao que é nosso: e o mau perder transforma-se no ódio aos mouros (que são só de uma cor, a despeito das muitas que há lá para baixo), cujo estádio deveria explodir e, já agora, a cidade toda e, por que não?, todos os que não nasceram iluminados ao ponto de gostarem de azul e branco (mais uma vez, sempre fui alvo da misericórdia alheia, porque, não sendo dos azuis do Norte, também não cometo o crime maior de ser de outra coisa qualquer ou, na pior das hipóteses, vermelha da mouraria).
Não estou a falar de clubite, estou a falar de algo muito maior, que urge reconhecer: hoje, li qualquer coisa como os mouros do Norte serem tão traidores como o seria um judeu nazi (ou outra balela qualquer, não sei se as palavras eram exactamente estas mas o sentido era-o).
E eu posso eliminar estas alminhas do Facebook e esquivar-me à leitura de atrocidades.
Mas elas continuam aí e isso assusta-me sobremaneira.
(E nem venham com a treta de que estas coisas não são para levar a sério; foi porque não se levou a sério muitos outros tipos de discriminação que elas atingiram o ponto que atingiram.)
Adorei! Morei em Lisboa e no Porto e senti efectivamente isso, como se, de Coimbra, fosse um híbrido qualquer que num lado é "do Norte" e no outro "do Sul", com tudo o que isso acarreta (E eu tão orgulhosamente do centro beirão!).
EliminarComo disse, eu entendo que as pessoas necessitem de criar uma identificação colectiva; para se sentirem seguras, para terem confiança, para sentirem que são algo (há imensa gente que sem o social não é nada -- essas mesmo que partilham tudo o que fazem narcisisticamente no facebook, com o simples intuito de ter um feedback de dezenas de pessoas), mas não entendo o lado negro dessa questão, da oposição grupal, esse prazer de "ver Lisboa arder" (coitados dos lisboetas!), de não se ser capaz de viver pacificamente com a diferença.