Toda a comoção e a indignação que tem movido o Facebook em
torno da sessão fotográfica com a Rita Pereira levou-me a, passados meses de
clausura e introspeção sobre evoluções e passos que somos obrigados a dar na
vida, escrever sobre o que trago em mim de um espaço que também se tornou meu, onde
deixei parte de quem era e trouxe muito do que sou hoje, Cabo Verde.
Explico-vos porquê.
Dizem que África nos molda, nos tolda, e nos deixa órfãos
quando nos vamos embora. Eu nunca acreditei, nem subscrevo, assumpções tão
generalistas que partem imediatamente do princípio que um continente, tão vasto
em culturas, mentalidades, povos, formas de viver, quantos os quilómetros que
separam países e meridianos que os ultrapassam, é todo igual. Não é. Dizê-lo,
de boca cheia, parece-me sempre tão acertado e sério quanto dizerem que nós,
portugueses, e os polacos são iguais, e que a Europa de uns é igual à dos
outros. Disparatado.
E, contudo, Cabo Verde, do qual posso falar, deixou-me assim,
moldada, toldada, órfã de uma terra que não era minha, que me maltratou no
primeiro ano e que passei a adorar. Tanto quanto aqueles amores estranhos,
loucos, que se entranham e dos quais só nos apercebemos quando se foram embora.
Ou quando partimos, que foi o que aconteceu, no meu caso. A vida é de evolução,
e a minha estava num afastamento que, fossem outras as condições, nunca teria
acontecido. Mas não são. Se há semana que passa em que não penso nas gentes, no
Sol, na calma e simplicidade de uma vida tão própria? Não há. Se sinto aquele
aperto para voltar, já amanhã, e abraçar o que de mim deixei lá, aqueles cujas
vidas tocaram na minha e me fizeram crescer, viver, saborear risos e partilhar
frustrações, gritar com o mundo mais petulante e chorar ao lado dos que se esforçam
por ter algo, com um ânimo de alguém que só de si se vale? Sinto. Muito.
Há qualquer coisa naquela terra, árida na maior parte do
tempo, naquelas pessoas, cuja morabeza não é a dos hotéis, nem a que
romanticamente idealizamos, que entra em nós e nos faz sentir aliens perdidos
no meio de comunidades, outras, materialistas, individualistas, com egos que se
medem pelas contas bancárias. O regresso foi um choque. Confesso. Deixar amigos
para trás, que ganharam lugar cativo no meu coração, com preocupações dignas de
seres humanos, completos, que lutam, que sabem distinguir o valor das coisas, e
das pessoas, e sentar-me à mesa de quem mede forças pelo preço do que compra,
do que tem, é algo que tem tanto de inexplicável, quanto de penoso. Aqui estou
eu, mais de um ano depois, a assumi-lo. O problema não eram os outros, esses
estavam iguais, era eu, diferente, não apenas num rosto mais cansado, mais
maduro, com a pele de quem viveu anos debaixo de um Sol mais claro, mais baixo, mais quente, mas
também nuns olhos que viram o que é viver sem nada, ali ao lado, e um coração que
não queria suportar o regresso, que anseia por voltar, que se sente perdido no
meio de outros, pequeninos, que se julgam muito maiores do que são. E nem
percebem como estão errados. Não estou melhor, nem pior, estou diferente.
Por isso, e chegando às malfadadas fotos que circulam por
aí, custa-me o extremo mau gosto da campanha (da qual não entendo a razão e,
quando assim é, significa que a estratégia de comunicação não foi tão bem
desenhada quando podia), mas ainda mais os comentários de comiseração bacoca,
compaixão de uma superioridade ignorante, que tratam as pessoas como se de "coitadinhos" se tratassem. E daqui parte um dos primeiros erros e sentimentos
que não se deveriam nutrir pelos outros. A comiseração misturada com uma pena
que, no desconhecimento, nos faz sentir defensores de causas, na net, por
escrito, mascarados por identidades virtuais, fachadas essas com as quais
podemos ser este mundo, e o outro (que a ser, sê-se em grande). Revoltamo-nos,
julgamos a modelo que lá está no meio como se o diabo fosse, porque “coitadinhos”
dos que estavam à volta, perante tanta opulência, tanta riqueza, no meio de
quem nada tem.
Não direi, com isto, que não vi muita "miséria" em Cabo Verde.
Vi. Crianças com roupa rota, a jogar com uma bola feita de trapos, descalças (se algum ser que se julgasse superior me visse, nos anos oitenta, na aldeia da minha avó, a brincar com a minha prima, descalças, sujas, na terra, também nos fotografaria). Mais
meninos de rua, sozinhos, do que alguma vez deveria ser permitido (porque até
um já é demasiado). Casas por construir, por terminar. Comida que escasseia em
muitos pratos e escolas demasiado longe para muitos alunos, que têm de andar
quilómetros a pé, faça sol ou chuva (e em Cabo Verde isto significa terra
alagada e muita lama, escorregadia naqueles montes do interior de Santiago). O
cansaço na vendedora de rua, que lá está o dia todo (todo! Não as quarenta
horas semanais, nem algumas horas extra, tão penosas e queixosas para alguns,
que acham que são desgraçadinhos a trabalhar, mesmo por conta própria, para
terem “coisas” topo de gama) para conseguir dar aos filhos, que a ajudam quando
podem, um futuro melhor. Jovens que batalham com a força de heróis para
conseguirem ir longe, simplesmente para serem quem querem ser, quem sonharam
ser, já que não podem contar com mais alguém a não ser com eles próprios. E
noutros países haverá, com certeza, ainda mais. Mas “coitadinhos”? “Coitadinhos”
não são. Até é ofensivo.
A distribuição de riquezas mundial é, de facto, assustadora e revoltante.
Não temos uma real noção de quanto até abrirmos as mentes e nos confrontarmos,
in loco, com ela, olharmo-la nos olhos e identificarmos a sua verdadeira alma,
diabólica. Um dia, um aluno meu disse-me que tinha sido Deus a fazer com que
algumas pessoas nascessem num país com tantas faltas, onde a chuva não cai, a
comida não abunda, no mar nem um pocinho de petróleo se encontra. Pequenino, já
que o país também não é grande. Sorri, tentei explicar-lhe que não. Mas como
perceber, eu, que vivi sempre com electricidade e o conforto de um banho quente
matinal, a visão de quem se habituou a conhecer outro mundo, o nosso, nas
palavras de emigrantes, nas fotos ou na televisão, quando havia? Fiquei com
vontade de pegar nas fortunas da ínfima percentagem dos grupos e pessoas que
seguram as cordas do mundo, e espalhá-las por ali. Mas não tenho como.
Infelizmente. Só posso fazer o que está ao meu alcance.
Não trouxe, contudo, comigo, a ideia de um povo e de uma
comunidade merecedores de uma pena vazia. Isenta de acções. Muitas vezes,
resultado apenas de uma noção de consideração mínima da regra do politicamente
correcto, totalmente desprovida de fundo de valor. Revolta-me a hipocrisia,
muitas vezes incorporada ao ponto de nos acharmos repletos de uma compaixão que
nos faz dignos de um pedaço do céu, ao ponto de me gerar náuseas. Sinto que é o
Cabo Verde que se entranhou em mim que me faz ficar fisicamente incomodada com
o coração oco alheio, aquele que faz mal ao próximo e defende, porque está
longe, o outro, só porque tem um tom de pele que, mediaticamente, fica bem
associado com a solidariedade e caridade.
O mundo evoluirá quando nos olharmos como iguais, e não uns
de um pedestal sobre os outros, os “coitados”. Há gente que precisa, muito, da
nossa partilha, onde quer que esteja, mesmo que seja aqui ao lado de casa. Cada um de nós sabe como essa parceria pela humanidade pode ser feita; cada um dá o que tem e sabe. E há
gente muito feliz e muito lutadora mesmo sem o último telemóvel ou carro topo
de gama (ou mesmo sem nenhum, acreditem). Ou sem vestir as marcas x ou y da moda, porque fica mal não as usar,
já que todos os outros têm. Satisfeitos com o que têm, com a vida que levam,
simples e humilde, mas nas quais há espaço para a família, que apoiam e para a
qual estão presentes, naturalmente, assim, de braços honestamente abertos, porque ela vem sempre em primeiro
lugar. E não estou a falar num núcleo pequeno, mas de uma colaboração entre
primos, tios, sobrinhos, que, em alguns casos, chega às dezenas. Há de tudo, em
todo o lado, de todas as cores, de todos os feitios.
Ninguém nos fez donos da sapiência superior, nem dignos de julgarmos os
outros por terem vidas, hábitos e mentalidades diferentes dos nossos. Muito
menos de manter estereótipos de uma "miséria" que é foto e videogénica, ao mesmo
tempo que nada fazemos para estender a mão ao outro. Numa das letras de uma das
minhas músicas cabo-verdianas favoritas, a Mnine de Rua, dos Cordas do Sol, encontramos,
a determinada altura, esta frase: “Es e mnine d'rua ma es meste nos tude/ Ai
munde, Ai Munde/ Un kalker d'nos pudia ser mnine d'rua” (É menino de rua, mas
precisa de todos nós /Ai mundo, ai mundo / Qualquer um de nós podia ser menino
de rua). E, para mim, é daqui que devia partir a ajuda, a parceria global, o
voluntariado e a mão estendida, ao lado, não por cima, não com a compaixão que “fica
tão bem”. Porque, lembrem-se “qualquer um de nós podia ser menino de rua”. E se
fôssemos, queríamos ser tratados como “coitadinhos”, especialmente por quem
pouco faz por nos conhecer?
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