(este post pode conter spoilers a título de exemplo de
Homeland e Bones)
Não gosto do sexismo nas séries. Pronto. Tenho dito e
assumido. É algo que me revolta até ao mais profundo do meu âmago, me dá a volta
ao estômago e me põe verde de raiva. Quando, então, acontece em séries que
comecei a seguir e até a gostar, que me dão a impressão, à primeira vista, de
serem diferentes, ainda pior.
Vão dizer que é comum, normal, e que as séries (e toda a
produção cinematográfica, convenhamos) são fruto de um contexto social e
reflectem, como tal, os valores e hábitos da sociedade na qual se insere. Mesmo
muitas, que pretendem ser, de alguma forma, diferentes, acabam por, em
temporadas seguintes, dar uma guinada conservadora, dentro do sistema, do comum
intocável. Vimos a Bones nos primeiros episódios como uma mulher determinada,
racional, criticada até por demasiado crítica e insensível. Vimo-la rodeada por
um grupo de cientistas entre os quais Hodgins, que, de quando em vez, lá se
mostrava anti-sistema e fã dos que muitos chamam de Teoria da Conspiração.
Independentes. Além do clima de romance entre o Booth e a Brennan, quem iria,
então, pensar que, mais tarde, ela se tornaria numa mulher que quer casar,
constituir a família “comum”, numa série com nuances de um nacionalismo bacoco
do “God save America”? Talvez tenham pensado nisso, mas eu não. Quero sempre
acreditar que me podem surpreender, e muito, pela positiva.
Em vários exemplos de séries de polícias (confesso que é um
género que me agrada bastante, para vegetar em frente à TV ou ao computador), vemos muitas vezes a mulher sensualizada,
sexualizada, completamente incoerente com o papel que desempenha. Não me
esqueço de um determinado episódio do CSI Miami em que uma das personagens
femininas, da equipa de investigação criminal, se desloca a uma cena de
incêndio com um fato todo cintado branco. Branco, sublinho. Numa zona cheia de
cinzas?! Francamente.
Quantas vezes não vemos, também, polícias ou investigadoras
de saltos altos, extremamente maquilhadas, sempre com roupas bem reveladoras do
corpo e com o cabelo sempre muito bem arranjado? Estou a lembrar-me da
Caleigh e da Boa Vista do CSI Miami, que vivem a combater criminosos no topo
dos seus saltos agulha; da JJ, da Prentiss, que fazem directas mas que nunca
estão com olheiras; da Penelope Garcia que, à sua maneira, cumpre 48 horas de
trabalho directo sem uma sombra esborrada ou verniz descascado, sempre ultra
produzida; da Chandler e da Vargas, embora com roupa mais confortável; da Rizzoli e de
tantas outras, sempre com tops justos e decotados, por oposição aos homens, de
fato e gravata, com o ar mais sério do mundo; com o cabelo fora do sítio e
barba por fazer quando tem de ser, quando é isso que retratam, e quase sempre
nas posições de chefia.
Quando Homeland começou, achei que tinha chegado (mais uma
vez, o meu lado crente), uma série que, contra todas as expectativas, tinha uma
mulher num papel coerente, forte, determinada e determinante como funcionária
da CIA. Uma espia sem ares de menininha, sem seduzir para recolher informações
e, acima de tudo, de pulso firme perante os homens (os chefes, para não destoar, nem incomodar, e
o suspeito) que a rodeiam. A determinada altura, mais uma vez, porque,
provavelmente, as massas gostam de ver romances e mulheres sensíveis no ecrã
(mas quem sou eu para especular sobre o que os outros gostam de ver,
acriticamente), a mulher firme torna-se uma apaixonada inveterada, invertebrada,
que se deixa levar muitas vezes pela emoção, impulsiva e de sangue quente. Que
pensa numa vida a dois, que a tire da solidão e sofrimento. Com razão em muitas
intuições ao nível profissional?! Com certeza. Mas “mulher” do senso comum,
tradicional, na forma como é construída a personagem na segunda temporada?! Sem
dúvida.
Alguns dirão que assim é por causa da bipolaridade diagnosticada da
Carrie, mas respondo-vos lembrando que a doença não explica tudo e, se queriam
manter uma personagem feminina forte, poderiam ter acrescentado outra ao elenco
principal. Que bem ficaria uma Quinn, no lugar do analista da equipa,
ponderada, firme, assertiva, em vez do actual, a quem a Carrie reporta (mais um
homem), pedido especialmente pelo Estes com um I want one of my men on the
team. Força de expressão?! “Men”, tão sexista quanto o resto (diga-se o que
disser, olhem lá para a sua origem).
A mulher, agora sem aspas, deve ser valorizada nas séries e
nos filmes pelo que é, como é. Pela força que a personagem tem, e não pela elasticidade
da roupa que veste. Como é que nós, comuns mortais, conseguimos estar ao nível de
alguém que corre, salta muros, escapa de tiros, trabalha a noite inteira
perfeitas, com a base sempre no sítio e o cabelo solto, ao vento, sempre alinhado,
liso sedoso ou encaracolado à babyliss (escolham)? Se não tiver o cabelo
apanhado, não consigo correr ao vento sem andar constantemente a tirá-lo da
boca; fico vermelha que nem um pimentinho com todo esse exercício e,
convenhamos, sombra, blush, e tudo o que tiver escorrerá pela cara abaixo com o
suor (ah, pois é, mas elas não suam); Se andasse a fugir pela minha vida o meu
cabelo (apanhado, claro está, porque se é pela vida há que ver bem por onde se
foge), no caminho, rebelar-se-ia comigo. Serei eu assim tão diferente? Não. Quem
escreve o guião sabe perfeitamente qual a diferença. E sabe bem porque o faz. Nós também.
Infelizmente.
Na realidade, apesar do longo caminho já percorrido, há, de
facto, muita desigualdade, muito sexismo mais ou menos camuflado, mais ou menos
pensado. Falar aqui noutras esferas que não a que me fez escrever este texto,
na ficção, seria tema para um blog inteiro. Não é esse o meu propósito. Mas,
acreditando que a nossa relação com os media não é a passiva que outrora se
acreditava ser, que temos voz e que podemos mostrar que percebemos a forma como
a mulher aparece, decidi que era tempo de pôr cá para fora estas pequenas
reflexões. Não sou a favor de um feminismo em que mulher deve afastar de si como se de Satanás se tratasse tudo o que é associado ao mundo feminino. Quem seria eu para ter um blog de beleza, se assim fosse. Mas acredito na escolha, na liberdade e na coerência. Em tudo.
Perdoem-me o desabafo aquelas que ainda não se tinham apercebido e
nas quais introduzi este bichinho que me revolta. Espero que um dia se
apercebam, aqueles que escrevem os textos que guiam a ficção que vemos, que não estamos de olhos e mentes fechados, e que comecem a tratar as
personagens femininas e as masculinas com a igualdade que merecem. E, já agora, que o espírito passe cá para fora, para a sociedade, que bem precisa.
Ó pá: clap, clap, clap.
ResponderEliminarEstá de pé a leitora, a amiga, e a prof daquilo que tu sabes.
(Sem mácula, brilhante!)
:D ahaha obrigada, mais uma vez. :D
EliminarDe pé! Aplaudo de pé! Não poderia dizer melhor. Aliás os "estilismos" do CSI Miami eram uma "running joke" entre mim e a Mommy: para além das roupas e cabelos impecáveis das moças havia o Horatio com os seus óculos Silhouette sempre vestido de preto no calor tropical da Florida...
ResponderEliminarEm termos de representações realistas só posso tecer elogios à TV nórdica que nos últimos tempos nos deu três grandes séries com mulheres fortes: a Sarah Lund de The Killing foi a primeira e seguem-se-lhe The Bridge (a adaptação americana com a Diane Kruger a interpretar a Sonya também é muito boa) e a próxima na minha lista de visionamento, Borgen (não é um policial mas uma série de intriga política em que a protagonista é a Primeira-Ministra).
Ah, o Horatio... Todo ele um estudo de caso só... :D
EliminarAinda não vi nenhuma das séries, mas vou pô-las na minha lista de preferências para quando terminar a Homeland. (Revolta-me, mas quero ver até onde levam a personagem :D )
Obrigada! :)
Muito muito bom! Concordo com tudo! E para falar de sectores onde ainda se sente o sexismo forte e feio estou cá eu que estudo numa faculdade de Engenharia onde 87% dos estudantes são homens!
ResponderEliminarObrigada! Ui a Faculdade de Engenharia é ainda uma das áreas comumente associadas aos homens, nas quais as mulheres são uma minoria assustadora. Eu ia estudar para as bibliotecas do Pólo II (algumas fantásticas!) e notava-se bem a diferença.
EliminarÉ, o pior é perceber que Homeland, apesar de tudo que você comentou, ainda está no topo em termos de dar a uma personagem feminina importância para além de ser namoradinha de alguém.
ResponderEliminarEu que já vi as outras temporadas posso te dizer que a coisa não degringola tanto, e acho até que o dilema dela se apresenta de maneira interessante e fora do usual. Porque a Carrie, por mais que possa às vezes desejar não ser tão solitária, faz de tudo por seu trabalho, e não se culpa por isso, o que é difícil ver em séries por aí.