Ainda
ontem te vi passar no olhar da senhora que todas as quartas traz o
pão quente, caseiro, que vende porta a porta para aconchegar a parca
reforma de uma vida de mulher, dependente do marido. Não estava de
preto, não tinha lenço à cabeça, mas a tua presença nos olhos
cinzentos, mais baços do que vidro no Inverno, afastava qualquer
comentário ou dúvida sobre a dor daquele ser franzino. Movia-se
lentamente, como um filme antigo em slow motion, arrastando com ela o
teu peso naquela existência, escurecida pelo dia em que te
encontrou, escondida numa esquina perdida na cidade, inesperada.
Antes de ti, a vida era fácil, e calma. Vivia preenchida entre as
refeições que preparava numa casa de cinco, e os afazeres de um lar
cheio de murmúrios suaves, conversas diárias e gargalhadas loucas,
daqueles que olhava com orgulho. Agora tem-te a ti.
Mostraste-me
então que hoje, mais do que nunca, acompanhas os passos daqueles
que, afastados por uma força que os transcende, se cruzam comigo com
os olhos opacos, alheados do mundo, preenchendo contigo a falta de
alguém, ou de algo. És uma presença cruel, para quem não souber
de ti tirar proveito, capaz de mergulhar a maior felicidade num poço
de pensamentos sombrios, e loucos. Questiono por momentos a tua
vontade de brincar com aqueles que se completam, atirando-os para
lutas distantes, separados, obrigando-os a aguentarem o sabor amargo
que deixas nos lábios secos, de tão sós se encontram, e a inércia
de umas mãos que não podem mais tocar o calor, outrora vital. Mais
eficácia te reconheço quando, no meio de uma multidão, te
encontro, mesmo ao meu lado, apagando uma a uma as faces que rodeiam
alguém, de sorriso forçado, ou ruga vincada na testa, quase
imperceptível, marca de um rosto que não deixas relaxar, que não
libertas. Naquele que no café brinca com o copo, ou finge que lê a
página do jornal, durante minutos longos a mesma, tentando
esconder-te bem fundo na sua alma, para que ninguém se aperceba que
lá estás. Mas um olhar atento vê-te claramente, impune, perante a
dor constante de muitos dos que passam, sem tocar, todos os dias.
Manhãs
há em que te encontro ao espelho, ao reprimir as palavras que ficam
por dizer ou as brincadeiras que se perdem no passar do tempo contigo
ou os beijos matinais perfeitos, que procuro em vão, de olhos
fechados, num misto de sonho e realidade. Fito-te tranquilamente, sei
como te encarar, e converso contigo, sem que me ouças, deixando o
sorriso atenuar as arestas afiadas que vão aparecendo na tua forma,
e a que outros ferem tão profundamente. Fazes parte da minha rotina,
acompanhando-me lado a lado, não me subjugas a uma existência
vazia, de mera sobrevivência num mundo que vais dominando. E, por
vezes, até a minha página de jornal se torna demasiado longa, e a
notícia demasiado distante do meu pensamento, que voa para lugares
onde não posso estar. Mas sei que és efémera e, como tudo, um dia,
desvanecerás.
* texto revisitado; direitos foto: M.L./Salinha de Estar
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