O ataque de hoje (de facto escrito ontem, mas adormecido a meio) ao Charlie Hebdo levanta, mais uma vez, várias questões que activam freneticamente a parte do meu cérebro que quer eliminar a idiotice e os extremismos aos quais assisto. Não estou aqui a definir tipologia do "extremismo" em causa porque, infelizmente, eles espoletam fundamentalismos de todos os lados e se achamos que só o encontramos nas acções horríveis de quem mata, estamos enganados. Ele está igualmente na parte de quem reage. E isso assusta-me profundamente.
Compreendam-me. Não estou a pôr todos no mesmo saco. Nem mesmo a afirmar que me horrorizam todos da mesma forma. Contudo, a cegueira e a ignorância daqueles que se insurgem nas redes sociais (e por aí), nos media, de lideres de opinião ou meros mortais, de forma tão odiosa, carregando rancores a pessoas, grupos, crenças, que não conhecem, com as quais não querem ter nada a ver, nem se aproximar, leva a uma escalada de violência que, francamente, me revolta e faz desacreditar na raça humana. Porque haver dois, ou três idiotas baralhados com a sua função na Terra e no seu papel enquanto ser humano, admito, não me amedronta tanto (por mais que as suas acções sejam, repito, atterrorizantes em certa medida) quanto a aglomeração de cérebros que se alimentam da retórica da violência, procurando argumentos para a manter e usá-la segundo o seu próprio prazer e vontade. E, convenhamos, Hobbes já nos dizia que, afinal, no seu estado de natureza, o ser humano não é propriamente uma criatura boa e altruísta. O poder será sempre a cenoura na ponta do fio. Seguir essa tendência de forma acrítica, proferindo frases irreflectidas ao vento, e espalhando-as como se fossem verdades absolutas, nunca nos fará melhores.
Sobre a liberdade de expressão, conceito tão maltratado, em consequência do atentado, depois de anos de luta por sermos quem somos e podermos manifestar a nossa opinião sem condenações, muitíssimo haveria a dizer. Especialmente depois de ler em tantos locais por aí que os cartoonistas do Charlie Hebdo (e outros, já agora, por arrastamento e, ah, olhem só como seria bom, todos os jornalistas!) deveriam ter sido/ser mais "razoáveis", como se fosse deles a culpa do que lhes aconteceu, vejo como há pessoas cujo desconhecimento histórico afecta, e muito, o julgamento. E como devemos temer o esquecimento da História!
Confesso, não sou adepta da ideia de Stuart Mill que tudo deva ser dito, especialmente nos media, pelo papel e poder que têm (nós, os que pouco influenciamos, que digamos o que quisermos que a única coisa que afectaremos é, de facto, a noção que outros têm de nós), mas a única linha clara que desenho (e que, para mim, é óbvia, embora reconheça que não é consensual e cada um tem a sua opinião) é efectivamente no discurso do ódio, na incitação à violência gratuita, directa, força activa em genocídios e crimes contra a Humanidade. Toda a gente se lembra com certeza do papel dos locutores de rádio no Ruanda em 1994, que iniciam a matança apelando aos hutus que "matem as baratas!". Isto sim parece-me condenável. Agora, não se confundam! Estamos a falar de um Estado democrático (França), de uma publicação de humor que era reconhecida como referência na sua área e que satirizava democraticamente em todas as direcções. Os olhos do Charlie Hebdo e o humor (infelizmente incompreendido por tantos) que jorrava das suas páginas não tinha um alvo preferencial, não era anti-islâmico, não era anti-nada, era apenas um grupo de mentes (brilhantes, que para mim quem faz bom humor tem de ter sempre uma capacidade intelectual acima da média) que brincava com tudo e todos, provocando a reflexão através do riso, de situações cómicas, de desenhos geniais (uns mais do que outros, mas é sempre a arte) e que, pelos que acompanhei, nunca incitaram o ódio contra quem quer que seja, pelo contrário, tratava todos por igual na sua jocosidade (imaginem como deveria ser divertido trabalhar numa redacção destas!). Colocar limites temáticos a cartoonistas destes é, no mínimo, desrespeitador. Tanto quanto teria sido dizer a Gil Vicente "Vá, agora não escreves nada sobre costumes da sociedade, que pode sentir-se ofendida. Gil, sê razoável.". Ou a Molière, também francês, ou a qualquer autor satírico... O que não teríamos perdido!
Sejamos razoáveis! Nenhum profeta foi vingado (pelo contrário, quero acreditar que, a haver algo/alguém, se ria desalmadamente de braço dado a moisés e a afins personagens das caricaturas que lhes fazem) pelo atentado, como nenhuma religião, nem deus foram ofendidos pelos desenhos. Afinal, não acreditamos que eles estão acima de nós em tudo?! Não compreenderão o humor e a sátira, já que são seres tão superiores a nós, reles mortais?! Tristes de quem não o compreendem, e que aproveitam a deixa para alimentar a raiva, a incompreensão e a violência e limitar liberdades conquistadas por vezes a custo de tantos.
Sem comentários:
Enviar um comentário